O magistério e a ação pastoral do papa Francisco são o fruto maduro da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Aparecida, em maio de 2007, da qual o cardeal Jorge Mario Bergoglio foi protagonista e figura de destaque. A Conferência de Aparecida indicou no "discípulo missionário" o sujeito da presença da Igreja na sociedade para que os povos latino-americanos tenham vida plena. O sujeito é quem tem consciência de si mesmo, de sua originalidade e missão. O novo sujeito que está na origem da libertação cristã nasce de algo diferente do puro dinamismo natural, não é fruto do esforço humano, nem mesmo do planejamento pastoral. A originalidade é dada pela irrupção do Espírito na história. Daqui procede a força profética da Igreja na América Latina, que assume a missão proclamada por Jesus na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou para levar aos pobres a boa notícia " (Lc 4, 18). Daí a vigorosa afirmação da evangélica opção preferencial pelos pobres. Trata-se exatamente e simplesmente da pobreza evangélica e do testemunho de vida em meio às pessoas, como vemos no ser e no agir do papa Francisco.
O seu ponto de partida não foi a análise social mas a fé de um povo feito na sua grande maioria de pobres, fazendo uso do método ver, julgar e agir, “a partir dos olhos e do coração dos discípulos missionários”. Diz o nº 19 do documento final: “Em continuidade com as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-Americano, este documento faz uso do método “ver, julgar e agir”. Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e do contato vivificador dos sacramentos a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência, e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu”.
Assim, o esquema do documento valoriza a tradição da teologia e da pastoral latino-americana, mas, ao mesmo tempo, coloca em evidência a perspectiva da fé. Certamente ela não estava ausente, mas em certos desenvolvimentos tinha sido dada como descontado, devendo preocupar-se, sobretudo, com a gravidade de uma situação social cheia de conflitos e, especialmente, com o clamor dos pobres. Neste sentido, a ajuda em entender toda a problemática conforme a posição de Clodovis Boff a partir de um artigo da Revista Eclesiástica Brasileira sobre a questão do pobre como princípio epistemológico da Teologia da Libertação. “Quando se questiona o pobre como princípio e se pergunta se não è antes o Deus de Jesus Cristo, a Teologia da Libertação costuma recuar e não nega. E nem poderia, pois Deus está em primeiro lugar, por definição. […] O que faz problema è a sua indefinição sobre uma questão que é capital na esfera do método” . O dado da fè “representa um dado pressuposto, que ficou para trás, e não um princípio operante que continua sempre ativo. […] Pois o primado da fé, como não pode ser dado por descontado do ponto de vista existencial, também não pode sê-lo do ponto de vista epistemológico” (Teologia da Libertação e volta ao fondamento, in REB, fasc. 268, out/2007, passim pp. 1002-1004).
Se o papa fala disso, significa que ainda podem subsistir as tentações e as ambiguidades. Certamente Aparecida deu uma contribuição significativa e marcou uma mudança de posição, que é válida não só para a América Latina mas para toda a Igreja. Isso se tornou possível graças ao magistério e ao testemunho do papa Francisco, que quer "uma Igreja pobre para os pobres".
Antes de sua eleição, Aparecida foi praticamente ignorada na Itália e na Europa e em outras partes do mundo, apesar das várias intervenções dos bispos latino-americanos nos últimos dois sínodos. Aparecida, numa fase não mais eurocêntrica, coloca-se hoje como um magistério não só regional mas oferecido a toda a Igreja em suas escolhas específicas, que constituem o desenvolvimento do Concílio Vaticano II. A começar pela opção pelos pobres à inculturação da fé, ao protagonismo dos leigos na luta pela justiça contra as estruturas sociais e econômicas injustas, passando pelas comunidades eclesiais de base até chegar às pequenas comunidades, etc. Tudo é valorizado: a vida, a família, o renascimento vigoroso da religiosidade popular, a liturgia, a arte, a cultura, as vocações, os jovens, os movimentos e as novas comunidades, etc. O tema dominante, no entanto, continua sendo a missão, especialmente na terceira parte do documento com o título sugestivo A vida de Jesus Cristo para nossos povos.
Da experiência latino-americana e de Aparecida deriva esse contato direto com as pessoas, esse assumir os problemas das pessoas levando a esperança de Cristo. Tudo é abraçado a partir da fé. Esta clara posição evangélica é um dom do Espírito e do seu poder, que age no povo fiel e que culmina na Conferência de Aparecida. Agora o papa Francesco a estende para toda a Igreja. Não se trata de uma teologia particular (como também se pode notar na entrevista concedida pelo papa à Civiltà Cattolica) mas do coração evangélico da libertação cristã. Assim se projeta não apenas uma "Missão continental", como está acontecendo na América Latina, mas uma verdadeira "Conversão pastoral" e uma "Missão permanente", em diálogo com as várias religiões e com as expectativas mais verdadeiras do mundo contemporâneo.
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